Meu caderno On line

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Inez Nerez

terça-feira, 2 de outubro de 2012

O PLANALTO E A ESTEPE



O PLANALTO E A ESTEPE



Sinopse - O Planalto e a Estepe - Pepetela

Julio e Sarangerel eram estudantes em Moscou, no auge da União Soviética, quando se apaixonaram. Ele, um jovem estudante angolano, entusiasmado com a revolução e ansioso por levar os preceitos socialistas ao seu país. Ela, uma jovem da Mongólia, aspirante aos mesmos ideais: um mundo mais justo. Não sabiam eles, porém, que a 'união dos povos' não seria algo tão fácil a ser conquistado. Pelo contrário: o amor da juventude tardaria 35 anos a ser concretizado. O autor angolano Pepetela faz um retrato sensível de uma época recente, de um mundo rigidamente dividido por duas ideologias. Um período em que a maioria das decisões eram tomadas na esfera política - até o amor. 





Sagarana, de Guimarães Rosa


Análise da obra


Publicado pela primeira vez em 1946, Sagarana constitui uma obra-prima da produção roseana, uma obra introdutória da mágica prosa literária atingida pelo autor. 

Sagarana promove uma total renovação do regionalismo brasileiro. Quando o livro foi publicado, promoveu um outro tipo de aproveitamento da linguagem regional. Guimarães Rosa trás uma complexidade maior para essa representação regional. Ele vai mais além, unindo o idioma brasileiro com a matriz européia, o que pode ser observado no próprio titulo da obra, Sagarana, que vem de "SAGA", radical de origem germânica, que significa “canto heróico”, e "RANA", língua indígena, que significa “à maneira de”.

São nove contos ou novelas, como costumam discutir os críticos, que descortinam o universo da linguagem regionalizante de Guimarães Rosa e recriam, na ficção, a vida de personagens saídos interior de Minas Gerais. A grandeza dessas produções narrativas não está apenas presa ao cenário, ou à linguagem, mas à riqueza da experiência humana traduzida através de personagens que parecem, em certos momentos, vencer suas fraquezas humanas para entrar para a galeria dos mitos e heróis do sertão. Dentro desse mundo regional, a paisagem integra-se ao homem, delirando junto com ele (Sarapalha), servindo de itinerário sensorial à sua cegueira (São Marcos), servindo de caminho e descaminhos (Duelo), mostrando seus avisos e perigosos (O Burrinho Pedrês) bem como instrumentalizando, através do trabalho, a possihilidade de ascensão ao plano do divino (A hora e vez de Augusto Matraga). O processo mimético (imitativo) atinge a perfeição meticulosa, recriando detalhes insignificantes da natureza sentido de capacitar a universalização, ou seja, de inventar uma outra natureza além espaço natural e emprestar ao cenário das Gerais características universalizantes.

Não são esquecidos os valores espirituais do matuto mineiro, que se igualam e traduzem os valores comuns aos homens de qualquer espaço ou tempo, consagrando a travessia humana pelo viver. As crendices deixam, assim, seu espaço restrito para tocarem a intuição universal de uma fé que ultrapassa fronteiras, colocando os sentimentos religiosos como de uma cadeia universal e metafísica, igualando os homens através de sua força interior circundando o pensamento roseano de que o destino inexorável nasce das atitudes humanas e da força diária empregada na sua condução.

O narrador dos contos de Sagarana muitas vezes caracteriza como folclóricas as histórias que conta, inserindo nelas quadrinhas populares e dando-lhes um tom épico e/ou de histórias de fada. Por exemplo, temos o "Era uma vez" que inicia o conto O burrinho pedrês (Era um burrinho pedrês). Neste conto, assim como em Conversa de bois e em A volta do marido pródigo, os animais se transformam em heróis, questionando o saber dos homens com o seu suposto não saber.

O título do livro, Sagarana, mostra-nos um processo de invenção de palavras, o hibridismo, muito próprio de Guimarães Rosa. Saga é radical de origem germânica e significa canto heróico, lenda; rana vem da língua indígena e quer dizer à maneira de, ou espécie de.

As histórias e desenrolar dos fatos prendem-se a um sentido ou moral, à maneira das fábulas. As epígrafes que encabeçam cada conto condensam sugestivamente a narrativa e são tomadas da tradição mineira, dos provérbios e cantigas do sertão.

1. Contos onde ocorre o crescimento dos personagens: O Burrinho PedrêsDueloCorpo Fechado e A Hora e Vez de Augusto Matraga.

2. Contos onde ocorre a humanização dos animais: O Burrinho Pedrês Conversa de Bois.

3. Contos de feitiçaria: Minha GenteSão Marcos e Corpo Fechado.

4. Contos onde um instante parece valer por toda uma vida: O Burrinho Pedrês e A Hora e Vez de Augusto Matraga.

5. Contos onde costumes dos capiaus servem de temática: A Volta do Marido Pródigo e Minha Gente.

6. Contos onde está presente a idéia de travessia: O Burrinho PedrêsDuelo e A hora e vez de Augusto Matraga.

7. Contos onde a natureza parece algo vivo (panteísmo): Sarapalha e São Marcos.

Cabe ainda ressaltar que o primeiro conto, O Burrinho Pedrês, e o último, A Hora e Vez de Augusto Matraga, fecham-se num círculo temático.

Cidade de Deus, de Paulo Lins




Análise da obra

Neste seu romance de estréia, Paulo Lins faz um painel das transformações sociais pelas quais passou o conjunto habitacional Cidade de Deus: da pequena criminalidade dos anos 60 à situação de violência generalizada e de domínio do tráfico de drogas dos anos 90. Para redefinir a situação do lugar onde cresceu, Lins usa o termo "neofavela", em oposição à favela antiga, aquela das rodas de samba e da malandragem romântica. 

O livro se baseia em fatos reais. Grande parte do material utilizado para escrevê-lo foi coletado durante os oito anos (entre 1986 e 1993) em que o autor trabalhou como assessor de pesquisas antropológicas sobre a criminalidade e as classes populares do Rio de Janeiro.

Cidade de Deus é um romance que traz fortes traços culturais de um povo predominantemente negro, cultuador da Umbanda e do Candomblé, devoto de São Jorge, amante do carnaval e dos ritmos brasileiros como o samba de partido alto, hoje mais conhecido como pagode; tradicionalmente freqüentador de clubes e bares, da praia do final de semana, da culinária associada às comidas fortes e ao consumismo popular por influência da mídia.

Foco narrativo

Escrito em terceira pessoa, Cidade de Deus é extensa narrativa que pode ser analisada como romance naturalista, quando descreve o modo de vida de seus personagens. A infância dos bandidos, nas brincadeiras de pipa, pião, futebol, nos banhos de rio e no contato com a natureza, marca esse naturalismo e depois, na maturidade do crime como única forma de sobrevivência, é a violência que comanda os destino, imperando a lei do mais forte, como se todos fossem animais vivendo numa selva urbanizada e primitivamente civilizada. A animalização está presente no modo de agir dos bandidos: o consumo de drogas, o tipo de alimentação, o prazer do sexo, a organização de suas casas e a forma naturalmente cruel como se matavam uns aos outros.

Linguagem

Outro caráter que podemos sentir em todo o livro é o realismo. O autor parte de fatos reais para estruturar o romance a adapta sua linguagem através de minuciosa pesquisa lingüística (diálogos, termos, gírias, palavrões) que permite, juntamente com a realidade dos fatos, apresentar ao leitor uma trama independente de qualquer sentimentalismo que possa amenizar a crueza imutável dos acontecimentos.

Muito definido também é o caráter expressionista. O exagero e a insistência da narrativa em descrever pormenores e detalhes dos crimes é característica que Paulo Lins mantém durante todo o livro e que destaca a forma grotesca pela qual o autor valoriza a violência e o suspense em cada gesto dos personagens.

Ainda podemos destacar o caráter de transformação que, ajudado pelo desenrolar dos fatos através de um longo período de tempo, marca a mudança de todos os componentes da trama. O conjunto habitacional transforma-se em favela, as crianças se transformam em bandidos, a polícia se corrompe, a natureza é poluída, os valores sociais se modificam etc.

Estrutura

Uma mescla de estilos é que mantém a estrutura do romance em constante tensão. A realidade se contrapõe à ficção, a natureza à urbanização, a civilização organizada à anarquia, a ambição do poder à simplicidade da vida e o progresso à decadência.

Tecnicamente o romance divide-se em três partes (capítulos). A narrativa tem estilo cinematográfico, em que o detalhamento das cenas é a maior característica. Há constante fragmentação que interrompe os casos narrados e também insere descrição dos personagens que entram na trama. Mesmo assim o romance segue uma cronologia linear em relação ao tempo real dos acontecimentos, com exceção de alguns flashbacks.

A primeira parte, A História de Cabeleira, narra a ocupação da Cidade Deus e a formação das quadrilhas. A ambição é individual, a relação com as drogas é mais no sentido do próprio consumo, e o que move a criminalidade dos bandidos é a vontade de fazer um grande assalto e viver o resto da vida nos moldes ideais dos burgueses. A participação da polícia é efetiva, que de forma violenta e implacável procura eliminar os criminosos. Destaca-se ainda o amor e o casamento. A segunda parte, A História de Bené, tem seu maior enfoque na busca do comando da favela por meio do tráfico de drogas e na nova geração de criminosos que dão proteção à comunidade. Também se destaca a ascensão dos cocotas como uma tribo social de características marcantes, a corrupção do sistema carcerário e a maneira de viver dos homossexuais. A terceira e última parte, A História de Zé Pequeno, traz a guerra propriamente dita e a seqüência interminável de sucessores no comando do tráfico. Emerge a figura do justiceiro implacável, Manoel Galinha, que, no entanto, não modifica o destino da marginalidade.

Personagens

Cidade de Deus envolve grande número de personagens. Os protagonistas se sucedem de acordo com o sucessivo e interminável número de mortes. Diante dessa característica, toda a trama é protagonizada principalmente pela própria Cidade de Deus. Por isso destacaremos somente os três principais, até porque o perfil descritivo da maioria dos protagonista se assemelha com o deles:

Cabeleira: Era negro de família humilde. Seu pai era alcoólatra e a mãe, prostituta. Elegante no andar, bom porte físico, bem sucedido com as garotas, habilidoso capoeirista, Cabeleira representa o anti-herói, surreal e lírico. Não estupra, respeita a comunidade e a rapaziada do conceito. É com ele que começa a respeitar os limites da favela para se assaltar. Cabeleira, no entanto, é cruel e maldoso com seus inimigos, mata sem piedade e sempre se vê protegido por seus exus e pombagiras.

Bené: É cria da Cidade de Deus. Sua crueldade fizera com que herdasse, junto com Zé Pequeno, todo o poder do tráfico na favela. Admira os cocotas e, depois que se enturma com eles, passa a se vestir só com roupas de grifes famosas e tatua um enorme dragão no braço. É negro, baixinho e gordinho. Não é feliz no amor e sonha em ganhar muito dinheiro para fundar uma comunidade alternativa.

Zé Pequeno: Também negro baixinho e gordinho, é o mais feio dos bandidos. Sua crueldade é a mais temível de toda a narrativa. Sonha em ser dono da Cidade de Deus e para isso não poupa ninguém. Constantemente coloca seus amigos uns contra os outros. A risada fina, estridente e rápida, acompanha suas ações de crueldade e é sua marca registrada. Totalmente infeliz no amor, estupra a namorada de Manoel Galinha, fato que gera a guerra na favela. Representa o poder do submundo do crime. É o que mais enriquece com o tráfico e que comanda a favela por mais tempo, inclusive de dentro da prisão. Seu fim finaliza o romance mas não finaliza a história da Cidade de Deus.

Enredo

Cidade de Deus é uma história de guerra. Não só a guerra na favela, mas uma constante disputa por poder, ascensão social e dinheiro. O romance toma variadas direções e tendências estéticas, ora explícitas na narrativa, ora simplesmente sugeridas no desencadear dos fatos. É o fruto de exaustiva pesquisa na qual Paulo Lins protagoniza uma favela como metáfora da sociedade carioca e da sociedade brasileira.

É importante destacar a relação dos moradores de Cidade de Deus com a morte. A importância de um bandido, por serem eles que faziam as leis de proteção à comunidade, era medida pelo número de pessoas que iam ao seu enterro ou pelo silêncio diante de alguma vítima de sua crueldade. Era o respeito a essas regras que fazia com que houvesse a paz.

A História de Cabeleira

Inicia-se o livro com Busca-Pé e Barbantino se drogando e a narrativa descrevendo as características físicas e particulares do empreendimento imobiliário que foi cedido para famílias de desabrigados e sem-teto que passavam necessidade no Rio de Janeiro. "Por dia, durante uma semana, chegavam de trinta a cinqüenta mudanças, do pessoal que trazia no rosto e nos móveis as marcas das enchentes.(...) Em seguida, moradores de várias favelas e da Baixada Fluminense chegavam para habitar o novo bairro (...) Do outro lado do braço esquerdo do rio, construíram apês..."

Entre os casos que se sucedem, intercala-se a descrição de Cabeleira, Marreco, Alicate, Salgueirinho, Pelé e Pará. Esses protagonizam a seqüência de crimes e assaltos e a disputa por melhores roubos e assaltos sempre a espera "da boa" que lhes possibilitará mudar de vida. Na divisão de poderes, Lá em Cima: Cabeleira, Marreco e Alicate e Lá em Baixo: Salgueirinho, Pelé e Pará.

A perseguição da Polícia aos bandidos é protagonizada pelo PM Cabeção e pelo detetive Touro. Astutos, conheciam o conjunto habitacional e eram tão cruéis quanto os bandidos; além de os conhecerem bem, sempre estavam na espreita dos marginais, andando fortemente armados e decididos a prender ou executar os inimigos.

Cabeleira tem uma queda por Cleide, mulher de Alicate, mas depois de conhecer Berenice, apaixona-se pela cabrocha e passa a viver com ela. Lúcia Maracanã é parceira nas fugas e sempre recebe os marginais com carinho e dedicação. Bá é dona de uma boca de fumo e, sempre protegida, abastece os bandidos de droga.

Os roubos que começam na Cidade de Deus, aos caminhões de gás, extrapolam os limites. Cabeleira era sempre decidido a roubar e nunca ficava sem dinheiro, e sempre "na ânsia de rebentar a boca".

Entram na trama Dadinho, Cabelinho Calmo, Bené e Sandro Cenourinha, ainda crianças, na iniciação da vida do crime já liderando seus bandos. Enquanto isso, Cabeleira se impõe, executando um delator e o detetive Touro continua na procura dos criminosos. Cabeleira, Carlinho Pretinho, Pelé e Pará planejam um assalto sensacional a um motel. Resolveram levar Dadinho, que na fuga desaparece, mas não morre e volta a cena mais tarde. Touro e Cabeção trocam tiros com todo mundo as anciã de pegar alguém.

A seqüência de crimes não se reduz aos protagonistas da trama. Casos absurdos são descritos, como o do marido traído que esquarteja vivo o filho que não era dele, entregando-o à sua mulher numa caixa de sapatos e do outro cortou a cabeça do "Ricardão" e entregou-o para a mulher numa sacola plástica.

A violência se materializa no dia-a-dia e vai se formando o tecido cultural das crianças de Cidade de Deus. Os meninos dividem seu tempo entre heróis da TV, pipas, brincadeiras, banhos de rio, aulas e a iniciação ao consumo de drogas.

A vida do crime continua, em paralelos aos costumes da comunidade, aos bailes, pelas biroscas, pelas vielas de Cidade de Deus e suas particularidades. Num desses bailes, Salgueirinho, que era galã disputando a tapa pelas meninas, volta para casa com uma cabrocha que morava nas Últimas Triagens e pela manhã, quando sai para a farmácia, é atropelado e morre. Diz-se que é por causa da macumba de uma mulher abandonada por ele. Seu enterro foi prestigiado por mais de duas mil pessoas e todas as suas mulheres compareceram.

Touro elimina um ex-policial e cruza com um sargento do Exército que acabava de ver Pelé e Pará assaltando um ônibus. Eles perseguem os bandidos e após a captura executam os marginais. A narrativa descreve a vida dos dois e como foram parar na Cidade de Deus. A tensão da trama é forte e até a matança de um gato para fazer "churrasquinho de feira" é descrita de maneira impressionante, dado o suspense da narrativa.

Jorge Nesfato tem seu fim como condenado por treze crimes que não cometeu, além de ser condenado pela mulher. Marreco é perseguido e apanhado por Cabeção. Acaba conseguindo fugir, mas na fuga uma bala perdida mata uma criança, colocando a comunidade em desespero. A operação de tráfico de drogas é comandada por Damião e Cunha. Damião mata Cunha para obter poderes e para ficar com Fernanda, que é mulher de Cunha. Como Fernanda não aceita, ele a espanca e some para nunca mais voltar.

Marreco apresentava comportamento esquisito: enlouquecia os vizinhos, repetindo que era filho do Diabo; estuprou uma paraibana casada e queria matar qualquer um que atravessasse seu caminho. Laranjinha não pára para falar com ele e só por isso é jurado de morte. Mesmo assim executa um assalto de sucesso e como Cabeleira se deu bem, assaltando o pagamento de uma construtora, eles vão juntos comemorar. A comemoração dura vários dias de intenso consumo de drogas. Depois da comemoração, Marreco volta a estuprar a paraibana que não oferece resistência, mas o marido surpreende Marreco e mata-o com uma facada. Ao enterro somente Lúcia Maracanã compareceu, porque seus amigos temeram o cerco da polícia.

Alicate pensa em mudar de vida. Acaba deixando a Cidade de Deus e tornando-se evangélico da Igreja Batista, em cujo templo trabalha e prega o evangelho. Cabeleira procura Madrugadão, seu novo parceiro, que lhe diz que Cabeção está cada vez mais ofensivo no cerco contra ele. Cabeleira vê em sonho seus amigos mortos, Marreco, Salgueirinho, Haroldo, Pelé e Pará, com a mesma indumentária e em meio a muito sangue. Marreco no sonho aconselha-o a matar Cabeção , se não quiser ir para a companhia deles no outro plano.

Cabeção executa Wilson Diabo e jura que o próximo é Cabeleira. Eles trocam tiros pelas ruas de Cidade de Deus, mas nenhum consegue atingir o outro. Marimbondo empresta uma pistola 45 e um fuzil para Cabeleira igualar-se a Cabeção. Ari, o irmão homossexual de Cabeleira , aparece e Cabeleira que não admite ter um irmão assim, se atem em se livrar do irmão para que ele não fique em Cidade de Deus. Enquanto Cabeção é implacável em sua caçada, a narrativa descreve sua vida, seu comportamento e seu ingresso na polícia. Ele continua a perseguir Cabeleira pelas vielas e acaba sendo surpreendido pelas costas por um vingados que o mata. Cabeleira fica sabendo do assassinato, mas nem sai de casa.

A narrativa volta ao início e conta a história de Busca-Pé e Barbantino, seus sonhos e a maneira de vida dos cocotas e playboys dos subúrbios e favelas cariocas. Da mesma forma é contada a história de Dadinho, como sua mãe ganha uma cadeira de engraxate a qual lhe servia para fazer assaltos e como ela descobre que Dadinho se inicia na vida do crime.

"...acordou Dadinho a tapas e chorando perguntava com o revólver nas mãos:
- Pra que isso?
- É pra assaltar, matar e ser respeitado!"

Volta à seqüência do assalto ao motel, Dadinho encontra Cabeleira que promete uma grana pelo serviço do assalto e Dadinho pede um revólver. Vão à casa de Marimbondo e são convidados a para novo roubo. Cabeleira não vai. Dadinho e Marimbondo fazem o assalto e se dão bem. No dia seguinte são noticias nos jornais. Empolgados, tramam o próximo crime, desta vez com Bené incorporado ao grupo.

O detetive Touro procura Marimbondo em casa onde se homiziavam, mas eles estavam assaltando uma gráfica. O insucesso revolta o detetive. "Pensava com brutalidade em tudo o que ocorria, porque era bruto, seu nome era Touro, sua fala, suas idéias. A vontade de querer mandar em tudo sempre lhe fora pertinente." Ainda continua rondando a casa de Marimbondo, enquanto os bandidos se escondem no mato após o roubo da gráfica.

Cabeleira se cansa de ficar entocado com os colegas e resolve sair sozinho. Queria ver os amigos de Cidade de Deus . A narrativa descreve uma manhã calma e silenciosa."...então por que aquela aflição? Por que aquela vontade de voltar para perto dos amigos? Aquela sensação de vazio lhe trazia sobressaltos, frios na espinha.(...) A qualidade da paz era superlativa também na Rua do Meio e fazia crescer aquele temor, temor do nada.(...) Não sabia o porquê, mas pequenos pedaços de sua vida vinham-lhe repentinamente de modo sucessivo. As mais vivas cores do dia tornaram-se significantes de significados muito mais intensos, confundindo a sua visão. O vento mais nervoso , o sol mais quente, o passo mais forte, os pardais tão longe dos homens, o silêncio inoperante, os piões rodando, os girassóis vergando-se, os carros mais rápidos e a voz de Touro agitando tudo: - Deita no chão, vagabundo! Cabeleira não esboçou reação. Ao contrário do que se esperava Touro (...) Talvez nunca tenha buscado nada, nem nunca pensara em buscar, tinha só de viver aquela vida sem nenhum motivo que o levasse a uma atitude parnasiana naquele universo escrito por linhas tão marginais. (...) Aquela mudez diante das perguntas de Touro e a expressão de alegria melancólica que se manteve dentro do caixão." A morte de Cabeleira fecha o primeiro capítulo.

A História de Bené

Inicia o segundo capítulo a narrativa descrevendo a herança do tráfico de drogas na Cidade de Deus e o crescimento de Dadinho no mundo do crime. Dadinho se consultava na Umbanda e assaltava cada vez mais. Apesar disso, lá em cima os traficantes eram mais respeitados e isso o feria. Morre o traficante grande e Dadinho toma a boca de seu irmão.

Na Cidade de Deus há mudanças no poder, que agora gira em torno do tráfico de drogas e os bandidos cada vez mais precocemente se destacam pela sua crueldade. Paralelo há um destaque para a vida dos cocotas e da "rapaziada do conceito", grupos que gravitam por fora da violência exacerbada dos bandidos e traficantes, atuando como coadjuvantes na ação dos quadrilheiros. No crime começam a destacar-se Bené e Zé Pequeno.

Enquanto a trama centra-se na história dos cocotas, suas aventuras, as brigas nos bailes, os festivais de rock, o amor de Thiago por Angélica e seu duelo com Marisol por causa da cabrocha, Pequeno dá a boca Lá de Cima para Sandro Cenoura (já crescido) depois de matar os comandantes do tráfico. Logo após planeja dividir tudo só com Bené. "Seu sonho de ser dono de Cidade de Deus estava ali, vivo, completamente vivo, realizado (...) Traficar, era isso que estava na onda, isso que estava dando dinheiro."

Com a morte de Cabeleira, seu irmão Ari, que atendia pelo nome de Soninha, retorna à Cidade de Deus e tem sua história de ódio com Pouca Sombra e de amor com Guimarães, que abandona a mulher para ficar com o homossexual. A narrativa descreve o submundo do homossexualismo, como eles vivem e se relacionam. Enquanto isso, uma sucessão de mortes é destacada na trama: Pequeno ameaça Bigodinho, que mata Jorge Gato e é morto por Pequeno, contrariando Acerola. Cabelo Calmo é preso quando completava dezoito anos. É encaminhado ao Presídio Lemos de Brito, onde é transformado em "mulherzinha" do xerife do presídio, um bandido que mantinha o comando interno da cadeia. Ao sair da prisão é recebido por Pequeno e Bené, mas não lhes revela sua vida no cárcere. Eles tomam a boca de Cenoura e, a pedido de Bené, Pequeno não o mata.

A narrativa descreve fatos e costumes do Presídio de Ilha Grande e o mecanismo da corrupção no sistema. Marimbondo, que chegara ao presídio com a mesma valentia com que se destacava na favela, é brutalmente assassinado a facadas. Em Cidade de Deus, Bené se enturma e "conquista" o cocota Daniel, a quem pede que lhe compre muitas "roupas de grife" para andar na moda dos cocotas cariocas. " - Sou palyboy! - dizia Bené a todos que comentavam sua nova indumentária. Tatuou no braço um enorme dragão soltando labaredas amarelas e vermelhas pelo focinho, o cabelo ligeiramente crespo foi encaracolado por Mosca." Com sua Calói 10 ia à praia todas as manhãs, tirando a maior onda da rapaziada. No seu envolvimento com a cocotada, acaba entrando na briga de Thiago e Marisol, por causa de Angélica. Faz com que os dois amigos façam as pazes e tudo fica bem.

A boca-de-fumo de Ari do Rafa, no morro de São Carlos, é atacada pela quadrilha de Pequeno e Bené. Simultaneamente, Nego Velho e Metralha assaltam uma rica residência. A quadrilha captura a boca de Ari do Rafa e todos, inclusive o Ari, são mortos e enterrados numa só cova. Carlinhos Nervo Duro, que dividia o poder no São Carlos com Ari do Rafa, toma partido e ataca a quadrilha de Pequeno e Bené. No tiroteio, novamente os bandidos do São Carlos levam a pior e somente Nervo Duro escapa com vida. Enquanto isso, Nego Velho e Metralha são perseguidos pela polícia em Cidade de Deus, mas escapam e dividem o roubo, em grande almoço, a quadrilha toda reunida. A polícia aparece, mas reconhece que não há condições de enfrentamento e passa reto. Manguinha e seus amigos voltam para a favela após uma série de assaltos espetaculares, disfarçados de médicos. O tráfico de armas junto à polícia e às forças armadas se intensificam e cresce a troca de donos das bocas-de-fumo. Conforme as mortes acontecem, seus responsáveis assumem a liderança das bocas e assim sucessivamente.

Enquanto Cabelo Calmo é preso novamente, Pequeno e Bené assumem o poder de Cidade de Deus e passam a ditas as leis da favela. São convidados a ajudar Voz Poderosa, compositor da Portela, na escolha do próximo samba da escola.

Bené vai para casa e chora com sua família contando seu sonho: "...pediu desculpas ao irmão, falou que ia ficar só mais um tempo na vida do crime para poder comprar um terreno e fundar sua sociedade alternativa."

Enquanto isso, Touro intensifica a perseguição a ele e a Pequeno. No cerco aos marginais, os policiais Lincoln e Monstrinho prendem Bené; Touro é afastado da Polícia por ter enforcado um trabalhador numa cela.

Preso, Bené pensa que sua vida poderia ser diferente e também que era apaixonado por Patricinha Katanazaka. Espada Incerta sai da prisão e jura para Cenoura que vai matar Bené. Vai para Realengo, vende um quilo de maconha e na comemoração fica bêbado jurando de morte toda a família de Bené. Acaba perdendo o dinheiro do tráfico e perseguido pela polícia; sua própria mãe é que morre enquanto ele é preso.

A cocotada inventa de assaltar um açougue para dar uma festa e Daniel é a atração principal da festa após uma fuga espetacular do carro da polícia que dá um flagrante durante o assalto. A narrativa enfatiza a natureza, que ameniza os sofrimentos do povo de Cidade de Deus.

Bené sai da prisão prometendo mandar todo mês uma quantia ao delegado. De volta à favela, poupa a vida de Butucatu, que deveria ser executado por Pequeno, pelo estupro e morte de sua ex-mulher. O criminoso não respeitou os limites da favela e por isso foi espancado pela quadrilha de Pequeno. Bené tem uma decepção com Mosca, sua mulher, que anuncia uma gravidez e decide interrompê-la. Na operação de aborto, Mosca morre.

Após ser espancado, Butucatu planeja matar Pequeno e pouco tempo depois, ainda com dores, parte para o ataque atingindo fatalmente o abdômen de Bené, que estava em companhia de Pequeno naquele momento. Pequeno também foi baleado, mas ainda teve forças para trocar tiros com Butucatu e sobreviver. O velório de Bené foi um evento à parte. "E uma lua redonda, claríssima, encantou ainda mais o eterno mistério que a noite sempre traz, e o enterro daquela manhã de sol intenso foi o maior que já se viu."

A história de Zé Pequeno

O terceiro capítulo começa com a inútil caçada de Pequeno a Pança e Butucatu, dois bandidos que conhecem todos de Cidade de Deus e juram em segredo matar todo mundo e a consumação do romance de Ari, o Soninha, com Guimarães, que enjoou da mulher.

Zé Pequeno procura uma loira por quem se apaixonou. Mexe com ela e, desprezado, estupra-a violentamente na frente do namorado. Depois procura o namorado, Mané Galinha, em sua casa para matá-lo e, não o encontrando, mata seu avô. Isso causa uma enorme revolta em Galinha, que parte para a vingança obstinadamente. Galinha havia servido na brigada de pará-quedistas do Exército e tinha uma enorme habilidade com armas, além de ser forte e atlético. No primeiro confronto Galinha mata dois quadrilheiros com extrema rapidez e crueldade. "Era a primeira vez que uma pessoa atirava em Pequeno na favela, matava dois de seus quadrilheiros e fazia com ele se escondesse."

Sandro Cenoura procura Mané Galinha para formar quadrilha e derrubar Zé Pequeno. Eles se unem e a guerra contra o bando de Zé Pequeno é inevitável. As quadrilhas aumentam e a guerra prolifera com a participação das crianças. Para manter a luta, Galinha começa a praticar assaltos, enquanto a imprensa destaca a guerra das quadrilhas de Cidade de Deus. O caos das quadrilhas em guerra é evidente, e, num dado momento, a narrativa dá uma trégua à guerra e passa a relatar outros crimes paralelos, estando Mané Galinha escondido por uns tempos. Mais tarde, voltando à sua obstinada caçada, Galinha vai à procura de Peninha e Cabelo junto com Fabiano, e acabam matando outro traficante. Aos poucos a guerra se generaliza, transformando Cidade de Deus no lugar mais violento do mundo. Seus soldados se uniformizam e, no auge do conflito, Cidade de Deus é uma praça de guerra. Após ficarem frente a frente, Pequeno atinge Galinha. Ele não morre, mas as matanças continuam na briga pelo poder do tráfico. Calmo é novamente preso e galinha é resgatado no hospital. Aumenta seu desejo de vingança pela morte de seu irmão Gilson. A polícia estava fora e, conforme passava o tempo, os bandidos iam contando suas vitimas. Mais uma vez, após um ataque de nervos, Galinha é baleado; depois, pela terceira vez, em conflito com Calmo e Madrugado, um viciado finge ajudá-lo e o atinge com vários tiros e sua morte é inevitável. O viciado vingava a morte de um irmão." A festa para comemorar a morte de Galinha atravessou três dias, enquanto Lá em Cima tudo era silêncio, ruas desertas, biroscas e lojas comercias fechadas. O Corpo de Galinha foi velado em sua própria casa, sem a presença de bandidos. Seu enterro, em número de pessoas, superou o de Bené e de Salgadinho."

A polícia monta um novo esquema de repressão para Cidade de Deus e uma operação de grande porte é acionada na região. "A insegurança dominava a favela. Até os viciados, antes fregueses bem-tratados porque sustentavam o ganha-pão, passaram a correr riscos de vida."

Enquanto Pequeno jogava Calmo contra Biscoitinho e tramar tomar a boca Lá em Cima, que é de Cenoura, a operação de polícia é escandalizada pelo massacre de um grupo de crianças. Mesmo assim, o cerco aumenta e o sargento Roberval prende Pequeno, mas o solta em seguida após pegar todo o dinheiro e pedir cinqüenta por cento de todo o dinheiro da boca.

Cabelo Calmo e Biscoitinho duelam pelos becos de Cidade de Deus e Calmo é atingido, mas foge com vida. O clima de revolta pela morte das crianças continua, assim como o comando de Sandro Cenoura nas bocas Lá em Cima. A guerra com a polícia faz enorme número de vítimas que são atiradas em lugares afastados. A ex-namorada de Playboy denuncia uma reunião de traficantes, a polícia cerca o local e faz uma chacina. Isso faz com que algumas bocas troquem de dono. "Pequeno deu o azar de ser abordado pelas Polícia Civil e Militar mais seis vezes. Tanto os civis como os militares o extorquiam."

Novamente flagrado com dinheiro, drogas e armas, Pequeno foi julgado e encaminhado ao presídio Milton Dias Moreira, onde passa a integrar a facção que dominava os presídios cariocas. Do presídio, pelo telefone, Pequeno passa as instruções a seu irmão Pinha e continua a comandar o crime, até que paga um suborno e sai do presídio, refugiando-se fora da Cidade de Deus. Cenoura é afastado da favela, mas sempre causando mortes. Cabelo Calmo se apaixona por uma professora e se entrega à polícia por insistência dela e acreditando na justiça. No segundo dia na penitenciária Lemos de Brito é assassinado a facadas por Nervo Duro.

A sucessão dos traficantes se intensifica: Israel é morto por Conduíte, e Biscoitinho, por Lampião. Otávio que era um cocota que pensava em matar todo mundo para ser dono do tráfico, entra para a macumba e se apresenta para a quadrilha da Treze, sob o comando de Tigrinho e Borboletão. Não pede nenhum cargo de hierarquia do tráfico. Ele só queria matar. Marisol, agora taxista, leva três tiros de Zezinho Cara de Palhaço, que é preso.

Enquanto Cenoura vai preso para a Baixada Fluminense, continua a sucessão de bandidos no poder das bocas. Otávio mata Jacarezinho, que estava sabotando a boca de Borboletão e Tigrinho. Ele domina Jacarezinho e faz com que cave a própria cova. Trajado de vermelho e preto, com uma cartola, Otávio é um assassino com requintes de brutalidade inigualáveis. " ...deu só um tiro para depois cortar o corpo de Jacarezinho com o facão. Com a própria cavadeira jogou a terra de volta para o buraco, foi até os pés da figueira mal-assombrada, acendeu sete velas, sentou em cima da cova, retirou um baseado do bolso, acendeu e fumou sem muita pressa." Depois desse crime, Otávio repete o ritual com mais de trinta vítimas e as enterra na mesma cova. É preso por dois anos e passa um tempo como pregador evangélico. Depois casou, teve filhos e jogou a culpa de seus crimes no Diabo. Alegando que fora dominado por uma força maléfica, incontrolável. Mais tarde, porém, voltou. " ...rasgou a Bíblia, queimou o terno com o qual costumava ir aos cultos e foi à boca pedir a Borboletão uma pistola para matar somente policiais."

Messias, o último "herdeiro" do tráfico Lá de Cima, propõe trégua a Borboletão e Tigrinho na Treze. Com isso a paz volta a reinar na favela. Bastiana, a Bá, deixa o tráfico; a nova geração de cocotas continua curtindo a vida; Busca-Pé realiza o sonho de ser artista como fotógrafo; Cara de Palhaço recebe visita de Marisol, que ficara paraplégico por sua causa, e dias depois aparece enforcado na cela.

Pequeno encontra Borboletão, que continuava com a boca dos Apês, e deixa claro que vai voltar. Tinha estado em Realengo. "O bandido tinha sua prepotência renovada e planos para ser novamente o dono de Cidade de Deus, e para isso já tinha planejado com seus parceiros de Realengo um ataque surpresa na Treze logo na primeira semana de seu novo mandato nos Apês, depois atacariam Lá em Cima."

No entanto, na sua volta, "...Tigrinho, que observava atentamente, retirou a pistola da cintura, deu um tiro no abdômen de Pequeno e saiu correndo junto com Borboletão". O bando de Pequeno se entocou nos Apês, Pequeno morreu ao som dos fogos de Ano-novo e eles voltaram para Realengo. Logo após a morte de Pequeno a narrativa se encerra. "Lá na Treze, Tigrinho, bem cedinho, mandou um menino moer vidro, colocá-lo dentro de uma lata com cola de madeira. Depois do cerol feito, passou-o na linha 10 esticada de um poste ao outro. Esperou o cerol secar na linha, fez o cabresto, a rabiola e colocou uma pipa no alto para cruzar com as outras no céu. Era tempo de pipa na Cidade de Deus.

A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente




A Farsa de Inês Pereira é considerada a mais complexa peça de Gil Vicente. 


Gil Vicente havia sido acusado de plagiar obras do teatro espanhol de Juan del Encina. Em vista disso, pediu para que aqueles que o acusavam dessem um tema para que ele pudesse, sobre ele, escrever uma peça. Deram-lhe o seguinte ditado popular como tema: Mais vale asno que me leve que cavalo que me derrube. No auge de sua carreira dramática, sobre este tema, Gil Vicente criou A Farsa de Inês Pereira, respondendo assim àqueles que o acusavam de plágio. A peça foi apresentada pela primeira vez para o rei D. João III, em 1523.

Ao apresentá-la, o teatrólogo português diz: "A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, na era do Senhor 1523. O seu argumento é que, porquanto duvidavam certos homens de bom saber, se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se as furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: é um exemplo comum que dizem:

Mais vale asno que me leve que cavalo que me derrube.

E sobre este motivo se fez esta farsa."

A Farsa de Inês Pereira é também considerada a peça mais divertida e humanista de Gil Vicente. O aspecto humanístico da obra vê-se pelo fato de que a protagonista trai o marido e não recebe por isso nenhuma punição ou censura, diferentemente de personagens de O Auto da Barca do Inferno e O Velho da Horta, que são castigadas por fatos moralmente parecidos.

É uma comédia de caráter e de costumes, que retrata a vida doméstica e envolve tipos psicologicamente bem definidos. A protagonista, Inês Pereira, é uma típica rapariga, leviana, ociosa, namoradeira, que passa o tempo todo diante do espelho, a se enfeitar, tendo em vista um casamento nobre. Por meio dessa personagem, Gil Vicente critica as jovens burguesas, ambiciosas e insensatas. Criticas também na figura de Brás da Mata, o falso escudeiro, tirano e ambicioso, malandro, galanteador, bem-falante e bom cantante, superficial e covarde. As alcoviteiras, alvo freqüente da sátira de Gil Vicente, têm na fofoqueira Lianor Vaz mais um tipo inesquecível da galeria gilvicentina. A classe sacerdotal também é satirizada. Os judeus casamenteiros, Latão e Vidal,  aparecem com seu linguajar e atitudes característicos. Gil Vicente esmera-se em compor o contraste entre Pero Marques, o primeiro pretendente, camponês rústico, provinciano, meio bobo, mas honesto e com boas intenções, e Inês Pereira, calculista, frívola e ambiciosa - uma rapariga fútil e insensata, a quem a experiência acabou ensinando a sua lição de vida.

Acreditando que a atitude da protagonista – expressa, inclusive, a partir de seu discurso - simboliza os valores de um mundo em transição, propiciando uma reflexão acerca das mentalidades medieval e pré-renascentista, nosso estudo propõe uma análise do auto em questão à luz dessa transição, em seus aspectos histórico, social e lingüístico, no olhar desse escritor situado entre dois mundos, sobretudo no que se refere ao papel da mulher.

Estrutura da obra

A Farsa de Inês Pereira é composta de três partes:

1. Inês fantasiosa - mostra Inês, seus desejos e ambições, e o momento em que é apresentada pela alcoviteira a Pero Marques. Essa parte retrata o cotidiano da protagonista e a situação da mulher na sociedade da época, por meio das falas de Inês, da mãe e da alcoviteira Lianor Vaz.

2. Inês mal-maridada - mostra as agruras do primeiro casamento de Inês. Nessa parte, o autor aborda o comércio casamenteiro, por meio das figuras dos judeus comerciantes e do arranjo matrimonial-mercantil, e o despertar de Inês para a realidade, abandonando as fantasias alimentadas até então.

3. Inês quite e desforrada - a protagonista casa-se pela segunda vez e trai o marido com um antigo admirador. Experiente e vivida, aqui Inês tira todo o proveito possível da situação que vive.

Foco narrativo

Não há, do modo tradicional, um narrador; em geral, há rubricas, isto é, anotações à parte da narrativa que servem de orientação para os atores ou para o leitor. São elas que esclarecem, geralmente, as questões de vestimenta, cenário, tempo, posição das personagens etc. As peças de Gil Vicente não trazem rubricas muito específicas.

Outra grande característica presente no gênero dramático é a predominância do discurso direto. Como as personagens são representadas concretamente, elas mesmas têm direito à fala, sendo o diálogo o meio usado para criar a trama narrativa.

Uma vez que as personagens falam diretamente, Gil Vicente, muito habilmente, soube usar essa artimanha para garantir o humor. Na fala de cada uma encontramos marcas importantes na delimitação de suas características: a ingenuidade de Pero Marques, o descaso e a argúcia de Inês, a malandragem do Escudeiro e daí em diante.

Gil Vicente seguiu a Medida Velha, característica da poesia medieval. Todas as falas foram compostas em verso redondilhos maiores, isto é, com sete sílabas poéticas, e sempre rimados.

Tempo / Espaço / Ação

O tempo representado na peça não é indicado. As cenas vão tendo seqüência não dando a idéia de tempo decorrido entre uma e outra. A única menção feita é do período passado desde que o Escudeiro foi à guerra até a chegada da notícia de sua morte: três meses, segundo o Moço. A maioria das cenas se passa num mesmo espaço especificado apenas como a casa de Inês. Todos os personagens acabam passando por ali. Em alguns momentos, os personagens vêm se preparando no caminho para a casa, como acontece com Pero Marques, o Escudeiro e o Moço. Mas de nenhum desses lugares há indicações cenográficas específicas como descrição do ambiente, iluminação etc. A mesma desatenção aparece com relação aos trajes dos personagens. Apenas Pero Marques tem sua roupa genericamente explicitada: “Aqui vem Pero Marques, vestido como filho de lavrador rico, com um gibão azul deitado ao ombro, com o capelo por diante”.

Personagens

Inês Pereira: jovem esperta que se aborrece com o trabalho doméstico. Deseja ter liberdade e se divertir. Sonha casar-se com um marido que queira também aproveitar a vida. Principal personagem da peça. Moça bonita, solteira, pequena-burguesa. Seu cotidiano é enfadonho: passa os dias bordando, fiando, costurando.  Sonha casar-se, vendo no casamento uma libertação dos trabalhos domésticos. Despreza o casamento com um homem simples, preferindo um marido de comportamento refinado. Idealiza-o como um fino cavalheiro que soubesse cantar e dançar. Contraria as recomendações maternas rejeitando Pero Marques e casando-se com Brás da Mata, frustra-se com a experiência e aprende que a vida pode ser boa ao lado de um humilde camponês.

Inês deixa-se levar pelas aparências e ridiculariza Pero Marques despedindo-o de sua casa para receber Brás da Mata. Casa-se com ele, mas sua vida torna-se uma prisão, ela não pode sair e é constantemente vigiada por um moço. Inês sofre e chega a desejar a morte do marido.

Ele morre covardemente na guerra e Inês casa-se com Pero Marques. Ele satisfaz todos os seus desejos e chega até a carregá-la nas costas para um encontro com um amante (sem saber, porém, que era para isso).

Mãe de Inês: mulher de boa condição econômica, que sonha casar Inês com um homem de posses. É a típica dona de casa pequeno-burguesa e provinciana. Preocupada com a educação e o futuro da filha em idade de casar. Dá conselhos prudentes, inspirada por uma sabedoria popular imemorial. Chega a ser comovente em sua singela ternura pela filha, a quem presenteia com uma casa por ocasião das núpcias.

Leonor Vaz: fofoqueira, encarregava-se normalmente em arranjar casamentos e encontros amorosos. É o esterótipo da comadre casamenteira que sabe seu ofício e dele se desincumbe com desenvoltura. Sabe valorizar seu produto com argumentos práticos de quem tem a experiência e o senso das coisas da vida.

Pero Marques: primeiro pretendente de Inês rejeitado por ser grosseiro e simplório, apesar da boa condição financeira. Foi seu segundo marido. Camponês simples, não conhece os costumes das pessoas da cidade.  É uma personagem ambígüa, ao mesmo tempo que é ridicularizado pela ingenuidade, é valorizado pela integridade de caráter. Fiel e dedicado, revela se um gentil e carinhoso marido.

É tão simples que não sabe para que serve uma cadeira. É teimoso como um asno e diz que não se casará até que Inês o aceite um dia.

Latão e Vidal: judeus casamenteiros, assim como Leonor. Os judeus casamenteiros são muito parecidos, têm as mesmas características, na verdade são o mesmo repartido em dois. São a caricatura do judeu hábil no comércio. Faladores, insinuantes, humildes, serviçais e maliciosos, são o estereótipo de que a literatura às vezes se serviu, como, por exemplo, no caso desta peça de Gil Vicente.

Brás da Mata: escudeiro, índole má, primeiro marido de Inês. Interesseiro e dissimulado é a representação da esperteza das classes superiores. É um nobre empobrecido que não perde o orgulho e pretende aproveitar-se economicamente de Inês através do dote. Brás da Mata é um escudeiro, isto é, homem das armas que auxiliava os cavaleiros fidalgos. Na mudança do feudalismo para o capitalismo, a maioria permaneceu numa condição subalterna, procurando imitar a aristocracia.

Moço: criado de Brás. Pobre coitado, explorado por um amo infame. Humilde, deixa-se explorar e acredita ingenuamente nas promessas do Escudeiro. Cumpre sua obrigação sem ver recompensa, mas é capaz de, em suas queixas, insinuar as farpas com que cutuca o mau patrão.

Ermitão: antigo pretendente de Inês e amante depois de seu casamento com Pero. É um falso monge que veste o hábito para conseguir realizar seu propósito de possuir Inês.

Fernando e Luzia: amigos e vizinhos da mãe de Inês.

Enredo

A peça tem início com a entrada de Inês Pereira cantando e fingindo que trabalha em um bordado. Logo começa a reclamar do tédio deste serviço e da vida que leva, sempre fechada em casa. A mãe, ouvindo suas reclamações, aconselha-a a ter paciência. Inês é uma jovem solteira que sofre a pressão constante do casamento. Imagina Inês casar-se com um homem que ao mesmo tempo seja alegre, bem-humorado, galante e que goste de dançar e cantar, o que já se percebe na primeira conversa que estabelece com sua mãe e Leonor Vaz. Essas duas têm uma visão mais prática do matrimônio: o que importa é que o marido cumpra suas obrigações financeiras, enquanto que Inês está apenas preocupada com o lado prazeroso, cortesão.

Lianor Vaz aproxima-se contando que um padre a assediou no caminho. Depois de contar suas aventuras, diz que veio trazer uma proposta de casamento para Inês e lhe entrega uma carta de seu pretendente, Pero Marques, filho de lavrador rico, o que satisfazia a idéia de marido na visão de sua mãe. Inês aceita conhecê-lo apesar de não ter se interessado pela carta. Pessoalmente, acha Pero ainda mais desinteressante ainda e recusa o casamento. Sua esperança agora está nos Judeus casamenteiros a quem encomendou o noivo de seus sonhos.

Aceita então a proposta de dois judeus casamenteiros divertidíssimos, Latão e Vidal, que somente se interessam no dinheiro que o casamento arranjado pode lhes render, não dando importância ao bem-estar da moça. Então lhe apresentam Brás da Mata, um escudeiro, que mostra-se exatamente do jeito que Inês esperava, apesar das desconfianças de sua mãe. Antes de vir conhecê-la, porém, o tal Escudeiro, na verdade, pretensioso e falido, combina com seu mal-humorado pajem as mentiras que dirá para enganar Inês.

O plano dá certo e eles se casam. No entanto, consumado o casamento, Brás, seu marido, mostra ser tirano, proibindo-a de tudo, até de ir à janela. Chegava a pregar as janelas para que Inês não olhasse para a rua. Proibia Inês de cantar dentro de casa, pois queria uma mulher obediente e discreta.

Encarcerada em sua própria casa, Inês encontra sua desgraça. Mas a desventura dura pouco pois Brás torna-se cavaleiro e é chamado para a guerra, onde morre nas mãos de um mouro quando fugia de forma covarde.

Finalmente em liberdade, a moça não perde tempo.Viúva e mais experiente, fingindo tristeza pela morte do marido tirano, Inês aceita casar-se com Pero Marques, seu antigo pretendente. Aproveitando-se da ingenuidade de Pero, o trai descaradamente quando é procurada por um ermitão que tinha sido um antigo apaixonado seu. Marcam um encontro na ermida e Inês exige que Pero, seu marido, a leve ao encontro do ermitão. Ele obedece colocando-a montada em suas costas e levando Inês ao encontro do amante.

Consuma-se assim o tema, que era um ditado popular de que "é melhor um asno que nos carregue do que um cavalo que nos derrube".



São Bernardo - Graciliano Ramos


Resumo
Paulo Honório era um pobre homem do sertão. Aprendera a ler na cadeia quando o companheiro de cela lhe ensinou usando a bíblia. Trabalhara na enxada e, depois da prisão, queria ganhar dinheiro, não pensava mais na mulher que lhe causara a prisão, aprendeu matemática para não ser roubado. Percorria o sertão fazendo pequenos negócios. De alguns lugares partiu para não voltar devido a malandragens das negociatas. 

Instalou-se em Alagoas, planejava tomar pra si a terra onde trabalhara na enxada. O ex-patrão vivera em economias para fazer do filho, Luis, doutor; acabou morrendo e o filho não seguiu a profissão. Paulo se vez amigo dele e em pouco tempo já tinha lhe emprestado dinheiro, a propriedade estava um lixo. Luis não tinha como pagar a dívida e foi assim que, para quitá-la, Paulo o fez entregar as terras de São Bernardo a ele. 

Logo teve problemas com o vizinho Mendonça que teimava em andar com os limites de sua terra. Porém, logo ele morreu e novas fronteiras foram estabelecidas. Paulo iniciara vários projetos nas suas terras. Tinha a mineração, as galinhas, o gado, as terras cultivadas. Tornara-se um homem importante. Tinha influência e emprestava dinheiro. Certa vez, justamente por recusar um empréstimo, teve no jornal uma nota o chamando de assassino, uma insinuação à morte de Mendonça. Paulo reagiu com agressividade, pois não tinha nada a ver com o fato, depois tudo foi apaziguado. 

Com a visita de um governador a São Bernardo e seus questionamentos acerca do por que da ausência de uma escola nas terras, Paulo mandou que uma fosse erguida e Luis foi contratado como professor. Recebia muito pouco, mas Paulo não tratava bem seus empregados, muito menos se preocupava com salários justos. 

Depois de certo tempo veio nele a idéia de se casar. Era preciso ter um herdeiro. Foi assim que cortejou Madalena, uma professora da escola normal. O casamento nunca correu bem. Junto com Madalena veio sua tia, Madalena tinha idéia de certa forma socialista. Paulo, no entanto, era autoritário e não se interessava pela pobreza dos trabalhadores. 

Madalena engravidou e teve um menino. A pobre criança não era amada pelos pais e vivia solta na fazenda. Nesse tempo um ciúme cegou Paulo que acreditava que a esposa mantinha casos com todos os homens. Ao mesmo tempo se sentia um bruto impossível de ser amado por ela. A situação se tornou tensa dentro da casa. Ele detestava a tia de Madalena e muitas vezes ela dormia a chorar. Já Paulo passava as noites em claro em meio a suas dúvidas. 

Foi nesse contexto que Madalena acabou se suicidando. Daí para frente as coisas desandaram na fazenda. A tia de Madalena resolveu ir embora e Paulo deu a ela os ordenados que ficara devendo a sua esposa. Logo as produções feitas em São Bernardo perderam o valor. A pedreira estava fechada há um bom tempo, os bens cultivados não eram colhidos, pois não valia a pena o trabalho de colhê-los para depois vender ao preço absurdo que se achava na hora da venda. E os animais que eram criados morriam e se escasseavam aos poucos. 

Paulo Honório ficou então a terminar de escrever o livro que iniciara onde narrava a sua vida, não tendo nem mesmo o filho, já que por ele não tinha amor.

Por Rebeca Cabral




Análise da obra


Publicado em 1934, São Bernardo está entre o que de melhor o romance brasileiro produziu. Num primeiro instante pode até parecer uma história de vitória de seu narrador-protagonista, Paulo Honório, que foi de guia de cego na infância até se tornar latifundiário do interior de Alagoas. No entanto, a questão principal é muito mais aguda e amarga.

Para alcançar sua ascensão social, o narrador paga um preço altíssimo, que é a destruição do seu caráter afetivo. Na verdade, a perda de sua humanidade pode ser entendida como fruto do meio em que vivia. Massacrado por seu mundo, acaba tornando-se um herói problemático, defeituoso (parece haver aqui um certo determinismo, na medida em que o homem seria apresentado como fruto e prisioneiro das condições mesológicas).

Há um aspecto que atenta contra a sua verossimilhança, que é um célebre problema de incoerência: como um romance tão bem escrito como pôde ter sido produzido por um semi-analfabeto como Paulo Honório. É uma narrativa muito sofisticada para um narrador de caráter tão tosco.

Quando se menciona que a narrativa é sofisticada, não se quer dizer que haja rebuscamento. A linguagem do romance, seguindo o estilo de Graciliano Ramos, é extremamente econômica, enxuta, mas densa de beleza.

Outra beleza pode ser percebida pela maneira como o tempo é trabalhado. Há o tempo do enunciado (a história em si, os fatos narrados) e o tempo da enunciação (o ato de narrar, de contar a história). O primeiro é pretérito. O segundo é presente. Mas há momentos magistrais, como os capítulos 19 e 36, em que, em meio à perturbação psicológica em que se encontra o narrador, os dois acabam-se misturando.

Todos esses elementos, portanto, fazem de São Bernardo uma obra do mais alto quilate, facilmente colocada entre os cinco melhores romances de nossa literatura.

Enredo
Paulo Honório, homem dotado de vontade férrea c da ambição de se tornar fazendeiro, depois de atingir seu objetivo, propõe-se a escrever um livro, contando a se vida, de guia de cego a senhor da Fazenda São Bernardo, 

Movido mais por uma imposição psicológica, Paulo Honório procura uma justificativa para o desmoronamento da sua vida e do seu fracassado casamento com Madalena, que se suicida.

No livro, ao mesmo tempo em que faz o levantarnento existencial de uma vida dedicada à construção da Fazenda São Bernardo, Graciliano Ramos desnuda o complexo destrutivo que Paulo Honório representa:

Cinqüenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber por quê! Comer e dormir como um porco! Como um pomo! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?


Comentários

São Bernardo é um romance de confissão, aparentado com Dom Casmurro. Narrado em primeira pessoa, é curto, direto e bruto. Poucos, como ele, serão tão honestos nos meios empregados e tão despidos de recursos; e esta força parece provir da sólida unidade que o autor lhe imprimiu. As personagens e as coisas surgem como meras modalidades do narrador, Paulo Honório. ante cuja personalidade dominadora se amesquinham, frágeis e distantes. Mas Paulo Honório, por sua vez, é modalidade duma força que o transcende e em função da qual vive: o sentimento de propriedade. E o romance é, mais que um estudo analítico, verdadeira patogênese desse sentimento.

De guia de cego, filho de pais incógnitos, criado pela preta Margarida, Paulo Honório se elevou a grande fazendeiro, respeitado e temido, graças à tenacidade infatigável com que manobrou a vida, ignorando escrúpulos e visando atingir o seu alvo por todos os meios.

O  “teu fito na vida foi apossar-me das terras de São Bernardo, construir esta casa, plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o descaroçador introduzir nestas brenhas a pomicultura e a avicultura, adquirir um rebanho bovino regular

É um homem que supervaloriza a propriedade, tipo de gente para quem o mundo se divide em dois grupos: os eleitos, que têm e respeitam os bens materiais, e os réprobos, que não os têm ou não os respeitam.

Daí resultam uma ética, uma estética e até uma metafísica, De fato, não é à toa que um homem transforma o ganho em verdadeira ascese, em questão definitiva de vida ou morte.

A princípio o capital se desviava de mim, e persegui-lo sem descanso, viajando pelo sertão, negociando com redes, gado, imagens, rosários, miudezas, ganhando aqui, perdendo ali, marchando no fiado, assinando letras, realizando operaçôes embrulhadíssimas. Sofri sede e fome, dormi na areia dos rios secos, briguei com gente que fala aos berros e efetuei transações de armas engatilhadas.

O próximo lhe interessa na medida em que está ligado aos seus negócios, e na ética dos números não há lugar para o luxo do desinteresse.

(...) esperneei nas unhas do Pereira, que me levou músculo e nervo, aquele malvado. Depois, vinguei-me: hipotecou-me a propriedade e tomei-lhe tudo, deixei-o de tanga.

(...) levei Padilha para a cidade, vigiei-o durante a noite. No outro dia cedo, ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi a dívida, os juros, o preço da casa, e entreguei-lhe sete contos quinhentos e cinqüenta mil-réis. Não tive remorsos.

Uma só vez age em obediência ao sentimento de gratidão, recolhendo a negra que o alimentou na infância e que ama com uma espécie de ternura de que é capaz. Ainda assim, porém, as relações afetivas só se concretizam numericamente:

A velha Margarida mora aqui em São Bernardo, numa casinha limpa, e ninguém a incomoda. Custa-me dez mil-réis por semana, quantia suficiente para compensar o bocado que me deu.

Com o mesmo utilitarismo estreito analisa a sua conduta: A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que me deram lucro.

Até quando escreve, a sua estética é a da poupança:

É o processo que adoto: extraio dos acontecimentos algumas parcelas; o resto é bagaço.

A aquisição e a transformação da Fazenda São Bernardo levam, todavia, o instinto de posse de Paulo Honório a arraigar-se num sentimento patriarcal, naturalmente desenvolvido - tanto é verdade que o seu modo de agir depende em boa parte das relações com as coisas.

Amanheci um dia pensando em casar Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito, difícil de governar (...) O que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de São Bernardo.

A partir desse momento, instalam-se na sua vida os fermentos de negação do instinto de propriedade, cujo desenvolvimento constitui o drama do livro.

Com efeito, o patriarca à busca de herdeiro termina apaixonado, casando-se por amor; e o amor em vez de dar a demão final na luta pelos bens, revela-se, de início, incompatível com eles. Para adaptar-se, teria sido necessária a Paulo Honório uma reeducação afetiva impossível à sua mentalidade, formada e deformada. O sentimento de propriedade, acarretando o de segregação dos homens, o distancia das pessoas, porque origina o medo de perder o que já conquistou, e o seu convívio com outros resume-se em relações de mera concorrência. O amor, pelo contrário, unifica e totaliza. Madalena, a mulher - humanitária, mão-aberta -, não concebe a vida como uma relação de possuidor e coisa possuída. Daí o horror com que Paulo Honório vai percebendo a sua fraternidade, o sentimento, para ele incompreensível, de participar na vida dos desvalidos.

Nessa luta, porém, não há vencedores. Acuada, vencida, Madalena suicida-se. Paulo Honório, vitorioso, de uma maneira que não esperava e não queria, sente, no admirável capítulo XXXVI, a inutilidade do violento esforço da sua vida:

Sou um homem arrasado (...) Nada disso me traria satisfação (...) Quanto às vantagens restantes— casas, terras, móveis, semoventes, consideração de políticos, etc. é preciso convir em que tudo está fora de mim. Julgo que me desnorteei numa errada (...) Estraguei minha vida estupidamente (...) Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.

Vencendo a vida, porém, foi de certo modo vencido por ela; imprimindo-lhe a sua marca, ela o inabilitou para as aventuras da afetividade e do lazer. Nesse estudo patológico de um sentimento, Graciliano Ramos - juntando mais um dado à psicologia materialista esposada em Caetés - parte do pressuposto de que a maneira de viver condiciona o modo de ter e de pensar:

Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte! A desconfiança é também uma conseqüência da profissão.

Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.

O seu caso é dramático, porque há fissuras de sensibilidade que a vida não conseguiu tapar, e por elas penetra uma ternura engasgada e insuficiente, incompatível com a dureza em que se encouraçou. Daí a angústia desse homem, cujos sentimentos eram relativamente bons, quando escapavam à sua tirania, ao descobrir em si mesmo estranhas sementes de moleza e lirismo, que é preciso abafar a todo custo.

Emoções indefiníveis me agitam — inquietação terrível, desejo do/do de ‘oltar de tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é antes desespero, raiva, um peso enorme no coração.