Meu caderno On line

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Inez Nerez

terça-feira, 2 de outubro de 2012

São Bernardo - Graciliano Ramos


Resumo
Paulo Honório era um pobre homem do sertão. Aprendera a ler na cadeia quando o companheiro de cela lhe ensinou usando a bíblia. Trabalhara na enxada e, depois da prisão, queria ganhar dinheiro, não pensava mais na mulher que lhe causara a prisão, aprendeu matemática para não ser roubado. Percorria o sertão fazendo pequenos negócios. De alguns lugares partiu para não voltar devido a malandragens das negociatas. 

Instalou-se em Alagoas, planejava tomar pra si a terra onde trabalhara na enxada. O ex-patrão vivera em economias para fazer do filho, Luis, doutor; acabou morrendo e o filho não seguiu a profissão. Paulo se vez amigo dele e em pouco tempo já tinha lhe emprestado dinheiro, a propriedade estava um lixo. Luis não tinha como pagar a dívida e foi assim que, para quitá-la, Paulo o fez entregar as terras de São Bernardo a ele. 

Logo teve problemas com o vizinho Mendonça que teimava em andar com os limites de sua terra. Porém, logo ele morreu e novas fronteiras foram estabelecidas. Paulo iniciara vários projetos nas suas terras. Tinha a mineração, as galinhas, o gado, as terras cultivadas. Tornara-se um homem importante. Tinha influência e emprestava dinheiro. Certa vez, justamente por recusar um empréstimo, teve no jornal uma nota o chamando de assassino, uma insinuação à morte de Mendonça. Paulo reagiu com agressividade, pois não tinha nada a ver com o fato, depois tudo foi apaziguado. 

Com a visita de um governador a São Bernardo e seus questionamentos acerca do por que da ausência de uma escola nas terras, Paulo mandou que uma fosse erguida e Luis foi contratado como professor. Recebia muito pouco, mas Paulo não tratava bem seus empregados, muito menos se preocupava com salários justos. 

Depois de certo tempo veio nele a idéia de se casar. Era preciso ter um herdeiro. Foi assim que cortejou Madalena, uma professora da escola normal. O casamento nunca correu bem. Junto com Madalena veio sua tia, Madalena tinha idéia de certa forma socialista. Paulo, no entanto, era autoritário e não se interessava pela pobreza dos trabalhadores. 

Madalena engravidou e teve um menino. A pobre criança não era amada pelos pais e vivia solta na fazenda. Nesse tempo um ciúme cegou Paulo que acreditava que a esposa mantinha casos com todos os homens. Ao mesmo tempo se sentia um bruto impossível de ser amado por ela. A situação se tornou tensa dentro da casa. Ele detestava a tia de Madalena e muitas vezes ela dormia a chorar. Já Paulo passava as noites em claro em meio a suas dúvidas. 

Foi nesse contexto que Madalena acabou se suicidando. Daí para frente as coisas desandaram na fazenda. A tia de Madalena resolveu ir embora e Paulo deu a ela os ordenados que ficara devendo a sua esposa. Logo as produções feitas em São Bernardo perderam o valor. A pedreira estava fechada há um bom tempo, os bens cultivados não eram colhidos, pois não valia a pena o trabalho de colhê-los para depois vender ao preço absurdo que se achava na hora da venda. E os animais que eram criados morriam e se escasseavam aos poucos. 

Paulo Honório ficou então a terminar de escrever o livro que iniciara onde narrava a sua vida, não tendo nem mesmo o filho, já que por ele não tinha amor.

Por Rebeca Cabral




Análise da obra


Publicado em 1934, São Bernardo está entre o que de melhor o romance brasileiro produziu. Num primeiro instante pode até parecer uma história de vitória de seu narrador-protagonista, Paulo Honório, que foi de guia de cego na infância até se tornar latifundiário do interior de Alagoas. No entanto, a questão principal é muito mais aguda e amarga.

Para alcançar sua ascensão social, o narrador paga um preço altíssimo, que é a destruição do seu caráter afetivo. Na verdade, a perda de sua humanidade pode ser entendida como fruto do meio em que vivia. Massacrado por seu mundo, acaba tornando-se um herói problemático, defeituoso (parece haver aqui um certo determinismo, na medida em que o homem seria apresentado como fruto e prisioneiro das condições mesológicas).

Há um aspecto que atenta contra a sua verossimilhança, que é um célebre problema de incoerência: como um romance tão bem escrito como pôde ter sido produzido por um semi-analfabeto como Paulo Honório. É uma narrativa muito sofisticada para um narrador de caráter tão tosco.

Quando se menciona que a narrativa é sofisticada, não se quer dizer que haja rebuscamento. A linguagem do romance, seguindo o estilo de Graciliano Ramos, é extremamente econômica, enxuta, mas densa de beleza.

Outra beleza pode ser percebida pela maneira como o tempo é trabalhado. Há o tempo do enunciado (a história em si, os fatos narrados) e o tempo da enunciação (o ato de narrar, de contar a história). O primeiro é pretérito. O segundo é presente. Mas há momentos magistrais, como os capítulos 19 e 36, em que, em meio à perturbação psicológica em que se encontra o narrador, os dois acabam-se misturando.

Todos esses elementos, portanto, fazem de São Bernardo uma obra do mais alto quilate, facilmente colocada entre os cinco melhores romances de nossa literatura.

Enredo
Paulo Honório, homem dotado de vontade férrea c da ambição de se tornar fazendeiro, depois de atingir seu objetivo, propõe-se a escrever um livro, contando a se vida, de guia de cego a senhor da Fazenda São Bernardo, 

Movido mais por uma imposição psicológica, Paulo Honório procura uma justificativa para o desmoronamento da sua vida e do seu fracassado casamento com Madalena, que se suicida.

No livro, ao mesmo tempo em que faz o levantarnento existencial de uma vida dedicada à construção da Fazenda São Bernardo, Graciliano Ramos desnuda o complexo destrutivo que Paulo Honório representa:

Cinqüenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber por quê! Comer e dormir como um porco! Como um pomo! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?


Comentários

São Bernardo é um romance de confissão, aparentado com Dom Casmurro. Narrado em primeira pessoa, é curto, direto e bruto. Poucos, como ele, serão tão honestos nos meios empregados e tão despidos de recursos; e esta força parece provir da sólida unidade que o autor lhe imprimiu. As personagens e as coisas surgem como meras modalidades do narrador, Paulo Honório. ante cuja personalidade dominadora se amesquinham, frágeis e distantes. Mas Paulo Honório, por sua vez, é modalidade duma força que o transcende e em função da qual vive: o sentimento de propriedade. E o romance é, mais que um estudo analítico, verdadeira patogênese desse sentimento.

De guia de cego, filho de pais incógnitos, criado pela preta Margarida, Paulo Honório se elevou a grande fazendeiro, respeitado e temido, graças à tenacidade infatigável com que manobrou a vida, ignorando escrúpulos e visando atingir o seu alvo por todos os meios.

O  “teu fito na vida foi apossar-me das terras de São Bernardo, construir esta casa, plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o descaroçador introduzir nestas brenhas a pomicultura e a avicultura, adquirir um rebanho bovino regular

É um homem que supervaloriza a propriedade, tipo de gente para quem o mundo se divide em dois grupos: os eleitos, que têm e respeitam os bens materiais, e os réprobos, que não os têm ou não os respeitam.

Daí resultam uma ética, uma estética e até uma metafísica, De fato, não é à toa que um homem transforma o ganho em verdadeira ascese, em questão definitiva de vida ou morte.

A princípio o capital se desviava de mim, e persegui-lo sem descanso, viajando pelo sertão, negociando com redes, gado, imagens, rosários, miudezas, ganhando aqui, perdendo ali, marchando no fiado, assinando letras, realizando operaçôes embrulhadíssimas. Sofri sede e fome, dormi na areia dos rios secos, briguei com gente que fala aos berros e efetuei transações de armas engatilhadas.

O próximo lhe interessa na medida em que está ligado aos seus negócios, e na ética dos números não há lugar para o luxo do desinteresse.

(...) esperneei nas unhas do Pereira, que me levou músculo e nervo, aquele malvado. Depois, vinguei-me: hipotecou-me a propriedade e tomei-lhe tudo, deixei-o de tanga.

(...) levei Padilha para a cidade, vigiei-o durante a noite. No outro dia cedo, ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi a dívida, os juros, o preço da casa, e entreguei-lhe sete contos quinhentos e cinqüenta mil-réis. Não tive remorsos.

Uma só vez age em obediência ao sentimento de gratidão, recolhendo a negra que o alimentou na infância e que ama com uma espécie de ternura de que é capaz. Ainda assim, porém, as relações afetivas só se concretizam numericamente:

A velha Margarida mora aqui em São Bernardo, numa casinha limpa, e ninguém a incomoda. Custa-me dez mil-réis por semana, quantia suficiente para compensar o bocado que me deu.

Com o mesmo utilitarismo estreito analisa a sua conduta: A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que me deram lucro.

Até quando escreve, a sua estética é a da poupança:

É o processo que adoto: extraio dos acontecimentos algumas parcelas; o resto é bagaço.

A aquisição e a transformação da Fazenda São Bernardo levam, todavia, o instinto de posse de Paulo Honório a arraigar-se num sentimento patriarcal, naturalmente desenvolvido - tanto é verdade que o seu modo de agir depende em boa parte das relações com as coisas.

Amanheci um dia pensando em casar Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito, difícil de governar (...) O que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de São Bernardo.

A partir desse momento, instalam-se na sua vida os fermentos de negação do instinto de propriedade, cujo desenvolvimento constitui o drama do livro.

Com efeito, o patriarca à busca de herdeiro termina apaixonado, casando-se por amor; e o amor em vez de dar a demão final na luta pelos bens, revela-se, de início, incompatível com eles. Para adaptar-se, teria sido necessária a Paulo Honório uma reeducação afetiva impossível à sua mentalidade, formada e deformada. O sentimento de propriedade, acarretando o de segregação dos homens, o distancia das pessoas, porque origina o medo de perder o que já conquistou, e o seu convívio com outros resume-se em relações de mera concorrência. O amor, pelo contrário, unifica e totaliza. Madalena, a mulher - humanitária, mão-aberta -, não concebe a vida como uma relação de possuidor e coisa possuída. Daí o horror com que Paulo Honório vai percebendo a sua fraternidade, o sentimento, para ele incompreensível, de participar na vida dos desvalidos.

Nessa luta, porém, não há vencedores. Acuada, vencida, Madalena suicida-se. Paulo Honório, vitorioso, de uma maneira que não esperava e não queria, sente, no admirável capítulo XXXVI, a inutilidade do violento esforço da sua vida:

Sou um homem arrasado (...) Nada disso me traria satisfação (...) Quanto às vantagens restantes— casas, terras, móveis, semoventes, consideração de políticos, etc. é preciso convir em que tudo está fora de mim. Julgo que me desnorteei numa errada (...) Estraguei minha vida estupidamente (...) Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.

Vencendo a vida, porém, foi de certo modo vencido por ela; imprimindo-lhe a sua marca, ela o inabilitou para as aventuras da afetividade e do lazer. Nesse estudo patológico de um sentimento, Graciliano Ramos - juntando mais um dado à psicologia materialista esposada em Caetés - parte do pressuposto de que a maneira de viver condiciona o modo de ter e de pensar:

Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte! A desconfiança é também uma conseqüência da profissão.

Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.

O seu caso é dramático, porque há fissuras de sensibilidade que a vida não conseguiu tapar, e por elas penetra uma ternura engasgada e insuficiente, incompatível com a dureza em que se encouraçou. Daí a angústia desse homem, cujos sentimentos eram relativamente bons, quando escapavam à sua tirania, ao descobrir em si mesmo estranhas sementes de moleza e lirismo, que é preciso abafar a todo custo.

Emoções indefiníveis me agitam — inquietação terrível, desejo do/do de ‘oltar de tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é antes desespero, raiva, um peso enorme no coração.

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